Em junho de 2017, nos reunimos mais uma vez na
escola Imaculada, como há exatamente um ano atrás (post aqui). Dessa vez, a
leitura escolhida foi “Quarto de despejo – diário de uma favelada”, da Carolina
Maria de Jesus.
Com a participação de alunos que participam do
Programa Escola da Família, conversamos a respeito dessa escritora, cuja vida
não foi fácil. O papel do jornalista Audálio Dantas, que descobriu os diários
dela e intermediou sua publicação, foi fundamental para que hoje seu livro
circule pelo mundo, em traduções para mais de 30 idiomas.
A edição que utilizamos como referência
apresenta algumas curiosidades, como por exemplo a origem da palavra favela.
A seguir, transcrevo em parte post a respeito
dessa obra publicado em meu outro blog, “Meu desafio de leitura”, na ocasião em
que tive o primeiro contato com o livro:
Acredito que a leitura de diários é a melhor
forma de se colocar no lugar de outro, em determinado contexto, época,
condição. Foi assim quando li “O diário de Anne Frank” e “Eu sou Malala”. E não
poderia ser diferente com “Quarto de despejo – Diário de uma favelada”, de
Carolina Maria de Jesus (Editora Ática). Não é uma leitura agradável e a
principal razão para isso é a fome, constantemente presente no dia a dia dela e
de seus filhos.
A escrita dela é visceral, porque assim foi sua
vida. Catadora de papel e outros materiais recicláveis, ela viveu na favela do
Canindé, em São Paulo, que ficava próxima do estádio da Portuguesa, por onde
hoje passa a Marginal Tietê. A cada dia, acordava cedo para buscar água e
precisava catar materiais para ter dinheiro para comer e alimentar seus filhos,
o que nem sempre era possível, fazendo com que ela pensasse em suicídio.
“... Já faz tanto tempo que estou no mundo que
eu estou enjoando de viver. Tambem, com a fome que eu passo quem é que pode
viver contente?” (12 de outubro de 1956)
Apesar de todas as dificuldades, Carolina
continuava lendo, escrevendo e tentando se manter otimista e a preservação dos
erros de ortografia e gramática torna esse relato ainda mais punjente:
“Eu sou muito alegre. Todas manhãs eu canto.
Sou como as aves, que cantam apenas ao amanhecer. De manhã eu estou sempre
alegre. A primeira coisa que faço é abrir a janela e contemplar o espaço.” (22
de julho de 1955)
No entanto, mesmo em momentos inspirados,
frequentemente a dureza da vida de quem nem sempre tem o que comer acaba se
manifestando nas anotações da autora:
“... Contemplava extasiada o céu cor de anil. E
eu fiquei compreendendo que eu adoro o meu Brasil. O meu olhar posou nos
arvoredos que existe no início da rua Pedro Vicente. As folhas movia-se.
Pensei: elas estão aplaudindo o meu gesto de amor a minha Pátria. (...) Toquei
o carrinho e fui buscar mais papeis. A Vera ia sorrindo. E eu pensei no
Casemiro de Abreu, que disse: ‘Ri criança. A vida é bela.’ Só se a vida era boa
naquele tempo. Porque agora a época está apropriada para dizer: ‘Chora criança.
A vida é amarga.’” (19 de maio de 1956)
Em alguns períodos, ela fica sem escrever por
meses e depois, ao retornar, explica que não teve tempo, que a situação está
difícil, que ficou doente... ao julgar pelos relatos dela, fica difícil
imaginar dias ainda mais difíceis do que aqueles que ela descreve. Mas eles
existiram. Carolina tem uma consciência política e social apurada. Ela chama a
favela de quarto de despejo, que é o cômodo da casa em que se deposita o que
não é bonito, onde se esconde as tralhas. E ela se coloca nesse lugar, como
parte do povo renegado pela sociedade, enganado pelos políticos, ignorado pelas
leis:
“... Os políticos sabem que eu sou poetisa. E
que o poeta enfrenta a morte quando vê o seu povo oprimido.” (20 de maio de
1956)
“Parece
que eu vim ao mundo predestinada a catar. Só não cato a felicidade.” (6 de
julho de 1956)
“(...) passei no sapateiro para ver se os
sapatos da Vera estavam prontos, porque ela reclama quando está descalça.
Estava pronto e ela calçou o sapato e começou a sorrir. Fiquei olhando minha
filha sorrir, porque eu já não sei sorrir.” (30 de julho de 1956)
Com todas as dificuldades, Carolina guardava
seus livros em um cantinho do barraco e jamais deixou de ler e escrever seus
diários. O jornalista Audálio Dantas foi quem a descobriu, quando era repórter.
Seu livro foi publicado, ela saiu da favela, mas morreu no esquecimento, em
1977.
Seu amor pelos livros está presente no diário:
“Encontrei um rato morto. Já faz dias que eu
ando atrás dele. Armei a ratoeira. Mas quem matou ele foi uma gata preta. Ela é
do senhor Antonio Sapateiro. O gato é um sábio. Não tem amor profundo e não
deixa ninguem escravisá-lo. E quando vai embora não retorna, provando que tem
opinião. Se faço essa narração do gato é porque fiquei contente dela ter matado
o rato que estava estragando os meus livros.”
“A vida é igual um livro. Só depois de ter lido
é que sabemos o que encerra. E nós quando estamos no fim da vida é que sabemos
como a nossa vida decorreu. A minha, até aqui, tem sido preta. Preta é a minha
pele. Preto é o lugar onde eu moro.”
Na edição de 2014, tem algumas curiosidades no
final, como a origem do termo "favela", que eu não conhecia, e a
menção a adaptações do diário para o cinema, teatro e até um samba de B. Lobo.
Confira o texto na íntegra, com uma sugestão de
filme e uma entrevista com a filha da escritora, aqui.
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